Na parte I e II mencionamos algumas vezes Jean Piaget. Explicamos que foi em grande parte devido ao conhecimento resultante das suas investigações, que se percebeu que existem diferenças qualitativas entre as estruturas intelectuais da criança e do adulto e até demos a entender que o desenvolvimento cognitivo pressupõe a passagem por diferentes etapas ou fases, quando referimos que o inicio da adolescência coincide com a entrada no estádio operatório formal.
Nesta publicação vamos então falar sobre a teoria de desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget e explicar com base nessa teoria como é processado e adquirido o conhecimento, bem como caracterizar cada um dos quatro estádios de desenvolvimento.
Em primeiro lugar vamos definir conhecimento como o processo de construção das estruturas mentais (cognitivas) e por esse motivo é importante esclarecer que para Piaget o conhecimento é uma construção ativa do sujeito. Essa construção é feita através da interação com o meio e por esse motivo o conhecimento não é adquirido de forma passiva, nem simplesmente atualizado. Segundo o construtivismo, que é a base para esta teoria, o sujeito responde a estímulos externos agindo sobre eles para construir e organizar o seu próprio conhecimento de forma cada vez mais elaborada, ou seja tudo o que aprendemos está relacionado com aquilo que já tínhamos aprendido anteriormente.
Agora que definimos o conceito de conhecimento, e que já explicamos que a sua construção resulta de um processo de interação dinâmico entre o sujeito e o meio, podemos então explicar como ocorre este processo e quais os fatores intervenientes.
Mecanismos de adaptação ao meio: Assimilação, Acomodação, Equilibração
Da nossa breve introdução queremos destacar dois pontos:
1º As estruturas cognitivas do ser humano não são inatas mas sim construidas
2º Essa construção é feita através da interação com o meio
Antes de explicar como são construidas as estruturas mentais do ser humano, vamos tentar explicar como a informação é processada pelo nosso cérebro.
O ser humano organiza o mundo através das suas estruturas cognitivas e podemos tentar imaginar essas estruturas como sendo pequenas árvores que representam grupos de informação relacionados entre si.
Cada árvore representa um esquema mental, e os seus ramos são as características comuns e invariáveis que representam determinado objeto. Por sua vez os seus ramos também se associam entre si formando circuitos de informação.
Por exemplo ao mencionarmos a palavra "animal" rapidamente ativamos vários esquemas mentais de alguns animais que conhecemos. Se formos mais específicos e mencionarmos animal de quatro patas com pêlo, já passamos para esquemas mentais mais específicos, e se terminarmos dizendo animal de quatro patas com pêlo que ladra, rapidamente imaginamos um cão.
É através desta associação e ativação de esquemas mentais que o nosso cérebro processa a informação, e as ramificações dos nossos esquemas mentais vão evoluindo à medida que somos confrontados com novos estímulos do meio, transformando os nossos esquemas em estruturas cada vez mais complexas.
Segundo Piaget, neste processo de desenvolvimento intervêm fatores influenciadores (hereditariedade, experiência física e transmissão social), e um fator determinante, o processo de equilibração.
Antes de explicarmos em que consiste o processo de equilibração é necessário contextualizar os dois processos sobre os quais a equilibração actua: o processo de acomodação e o processo de assimilação.
Assimilação ocorre quando a criança consegue incorporar um novo estimulo ou uma nova experiência num esquema mental que já possui. Por exemplo a criança já possui o esquema mental de cão quando vê um cavalo pela primeira vez. Embora para nós que já possuímos esquemas mentais para cavalos e cães achamos que as diferenças entre os dois são óbvias, quando a criança vê o cavalo pela primeira vez vai tentar rapidamente associar aquele novo estímulo aos esquemas mentais que já possui. Neste caso devido às semelhanças existentes entre os dois animais (têm ambos quatro patas, pêlo, cauda etc) a criança ao ver o cavalo vai considerar que está na presença de um cão. Ou seja existe assimilação quando os novos estímulos e experiências são absorvidos pelas estruturas mentais já existentes.
Já a Acomodação ocorre quando a criança não é capaz de assimilar os estímulos do meio através dos esquemas mentais que já possui. Voltando ao exemplo anterior, a criança iria chamar cão ao cavalo, no entanto um adulto neste momento podia intervir dizendo que ela estava na presença de um cavalo (processo de transmissão social) e não de um cão. Neste momento a criança iria acomodar esse estimulo num novo esquema mental, construindo assim novo conhecimento e uma nova forma de organizar o mundo. Ou seja ocorre acomodação quando "crescem" novas ramificações nos esquemas mentais já existentes, ou quando são criados novos esquemas. Em ambos os casos ocorrem mudanças internas nas estruturas cognitivas da criança.
Piaget deixa bem claro que os processos de acomodação e assimilação não ocorrem de forma isolada. Por um lado para haver assimilação significa que já existem estruturas internas criadas, ou seja, já aconteceram acomodações anteriormente. Por outro lado também não ocorre acomodação sem assimilação na medida em que não estamos simplesmente a criar os esquemas mentais a partir do zero, estamos sim a fazer sucessivas diferenciações. Voltando ao exemplo anterior, a criança não cria um esquema de raiz para o conceito de cavalo, ela inicialmente assimilou todas as características comuns no esquema que já possuía de cão (quatro patas, pêlo, cauda etc) e depois simplesmente especializou o esquema mental para incorporar o conceito de cavalo tendo em consideração as novas características (diferença de tamanho etc). Quando fizemos a analogia entre esquemas mentais e árvores, explicamos que os ramos seriam as características invariáveis de cada objeto ou ação, e também referimos que os ramos se associam entre si criando circuitos de informação. Estas associações são o resultado de especializações o que significa que no nosso exemplo do cão e do cavalo, o resultado mais provável da acomodação do conceito de cavalo seriam três esquemas mentais interligados entre si. Um esquema representa os animais de quatro patas com pêlo e cauda, que por sua vez se iria especializar e ligar a mais dois esquemas com base nas suas características especificas, o cão e o cavalo. Ou seja o desenvolvimento cognitivo da-se através de sucessivas equilibrações entre assimilação e acomodação, resultando em esquemas mentais cada vez mais estáveis que possibilitam uma eficiente interação entre a criança e o seu meio-ambiente.
Estádios de Desenvolvimento
Agora que já explicamos como é processado e adquirido o conhecimento, vamos falar sobre os estádios de desenvolvimento. Em primeiro lugar é importante referir que a passagem por casa estádio respeita uma sucessão invariável, ou seja, para chegar ao quarto estádio de desenvolvimento a criança teve de passar com sucesso pelos três estádios anteriores. No entanto embora a sucessão seja fixa, a data cronológica de entrada e saída de cada estádio (embora seja mais ou menos regular), não precisa de ser constante pois depende das características biológicas do indivíduo, bem como de fatores sociais e educacionais. O que é absolutamente obrigatório é o desenvolvimento de estruturas mentais em cada um dos estádios que ao serem refinadas e tornando-se cada vez mais complexas e eficazes permitem a entrada nos próximos estádios, reforçando assim a ideia de construção de conhecimento.
Estádio Sensório-Motor (0-2 anos):
Como o próprio nome indica este estádio é muito prático, já que a criança faz uso essencialmente da sua inteligência prática. Os esquemas criados nesta fase são essencialmente esquemas de ação que permitem à criança interagir com os objetos que a rodeiam, ou seja a criança nesta fase da sua vida constrói o seu conhecimento através de ações físicas tais como sacudir objetos etc. Talvez o aspeto mais marcante deste período seja a aquisição da noção de permanência do objeto (a criança procura um objeto escondido porque tem a noção que o ele continua a existir mesmo quando não o vê). Sem esta aquisição a criança não poderia passar para o estádio seguinte.
Estádio Pré-Operatório (2 - 6/7 anos):
Os esquemas de ação desenvolvidos no estádio anterior são refinados, e a criança vai aprendendo a realizar tarefas mais especificas como segurar num lápis e fazer desenhos. A característica mais importante deste estádio é o uso da função simbólica. A criança passa a ser capaz de criar esquemas mentais que representam objetos, desta forma deixa de ser dependente exclusivamente das suas sensações para interagir com o mundo, e passa a ter a possibilidade de através de palavras e desenhos (ou seja símbolos) referir-se a objetos que podem nem estar presentes no local em que ela se encontra (imagem mental).
A linguagem é sem duvida uma das mais importantes manifestações desta "inteligência simbólica", mas esta também é a idade do jogo simbólico (onde a criança imita comportamentos, finge que está a dormir etc) e do desenho (onde um risco pode representar um avião etc).
Este estádio pode ser dividido em dois sub-estádios, o pensamento pré-conceptual (2-4 anos) e o pensamento intuitivo (4-6/7 anos).
O primeiro sub-estádio é marcado pelo egocentrismo da criança, que é incapaz de ver as coisas de outro ponto de vista que não o seu. Nesta fase a criança tenta compreender o mundo com base nas suas próprias emoções e vivências, e por esse motivo é normal acreditar que a noite existe para ela ir dormir, ou que o cão ladra porque está com saudades da mãe. É uma fase mágica na vida da criança, no entanto é importante que a partir aproximadamente dos cinco anos, o adulto não reforce mas sim atenue estes conceitos.
O segundo sub-estádio é marcado pela necessidade que a criança tem de usar os seus sentidos para avaliar as situações. Por exemplo uma criança não é capaz de perceber que a quantidade de água permanece constante independentemente do formato do copo.
Estádio das Operações Concretas ( 6/7 - 12 anos):
A criança consegue ultrapassar o egocentrismo que caracterizava o estádio anterior, e começa a ver o mundo com mais realismo uma vez que foi aprendendo a distinguir fantasia da realidade ao longo do estádio anterior. No entanto a principal característica deste estádio é a aquisição do pensamento lógico. Não é por acaso que a entrada neste estádio coincide com a entrada na escola formal, já que a criança está agora preparada para iniciar um processo de aprendizagem sistemática. Os seus níveis de concentração aumentam e o seu pensamento fica mais estruturado, no entanto ainda não desenvolveu capacidade de abstração e por esse motivo embora seja capaz de resolver problemas precisa de estar em contacto com a realidade, ou seja é muito importante ensinar a criança através de exemplos e situações concretas.
Estádio das Operações Formais (dos 12 anos em diante):
A ultima fase de desenvolvimento. Segundo Piaget o amadurecimento biológico do adolescente (mais informações sobre este tema na publicação anterior) permite a aquisição das operações formais que representam o ponto máximo no desenvolvimento cognitivo. A principal característica deste estádio é a capacidade de pensar de uma forma hipotético-dedutiva, ou seja o adolescente adquire uma enorme flexibilidade de pensamento e pode movimentar-se entre a realidade e o concreto, para o que "poderia ser". Nesta fase a capacidade de pensar de forma lógica adquirida no estádio anterior é refinada, e passa a ser possível trabalhar com ideias e conceitos abstratos, ao contrário do estádio anterior onde a criança só conseguir resolver problemas com exemplos concretos.
Esta é a fase das grandes mudanças, das grandes teorias e dos grandes projetos onde o adolescente consegue formular e verificar hipóteses, e adquire a capacidade de reflexão.
Nesta fase surge uma nova forma de egocentrismo, desta vez numa vertente mais intelectual, onde o adolescente acredita que as suas ideias e convicções são as melhores e que pode mudar o mundo pela palavra e pelo poder ilimitado do seu pensamento.
Conslusões Gerais
Destacamos da teoria de desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget a construção progressiva do conhecimento, que vai atingindo níveis cada vez mais complexos e elaborados, e a forma como essa evolução se processa, sendo o resultado de uma construção ativa do sujeito que reage aos estímulos do meio e se adapta à realidade.
Ao longo desta publicação demos apenas exemplos de esquemas mentais que representavam conceitos (esquema de animal, cão, cavalo), no entanto o mesmo se aplica para os esquemas de ação. Ou seja, quando falamos em aprendizagem motora, a forma de elaborar os esquemas mentais que representam as ações que pretendemos no treino por exemplo é a mesma. Isto significa que é de enorme importância fornecer estímulos adequados e variados ao longo das aulas de educação física e do treino, para que os esquemas mentais sejam construidos de forma progressiva atingindo níveis cada vez mais complexos que permitam à criança/atleta atingir patamares de qualidade cada vez mais elevados.
Aprender significa realizar uma mini mudança nas nossas estruturas cognitivas, logo não é possível saltar etapas no treino e também não faz sentido tentar exigir algo para o qual os nossos atletas/alunos ainda não estão preparados.
Podemos ver neste vídeo um excelente exemplo do uso de um método de treino/ensino que tem em consideração a fase atual de desenvolvimento de um bebé, e tira todo o partido das suas características e capacidades que lhe permitem uma boa aprendizagem de instintos de sobrevivência.